terça-feira, outubro 31, 2006



Depois de horas olhando para a tela de um editor de textos em branco, percebo que não vai dar tempo, nada vai funcionar exatamente do jeito que eu esperava e estou definitivamente ferrado, sem nem mesmo começar. Que puxa! Nesse momento, eu poderia ser Charlie Brown.

Quando Charles Schulz estreou sua série “Lil’ Folks”, em 1947, nunca poderia imaginar que até hoje seu pequeno mundo infantil serviria de espelho para a frustração e melancolia de pessoas de todas as idades. Mas o que existe de tão especial nas tiras de Charles Schulz?

A primeira característica importante dos Peanuts – quando Schulz entrou para o United Features Sindycate, o nome das tirinhas foi alterado para “Peanuts” – é que, ao contrário da maioria das tirinhas até então, exigia um ato contínuo de leitura. Você pode amar a “Turma do Minduim” à primeira vista, mas só vai entender a graça e a ternura contidas depois de conviver com eles por um longo tempo.

Outro fator importante é que essas crianças são – segundo Umberto Eco – “monstruosas reduções infantis de todas as neuroses de um moderno cidadão da civilização industrial”. Mas ao contrário do que pode parecer, eles não são “mini-adultos”. São crianças vivendo coisas de crianças e agindo como crianças.

E o fator mais desesperador, metáfora perfeita de um mundo pós-Sartre: Adultos não intervêem na história. Até os desenhos, enquadrando exatamente o corpo de nossos pequenos, previne a participação adulta na história. Como o nosso mundo, se existe um deus, é impossível provar e não faz muita diferença, essas crianças estão entregues para descobrir o mundo sozinhas. Em seu desespero infantil, vemos até Lucy explorando seus amigos, com psicanálise à cinco centavos. Lucy é a padroeira dos escritores de auto-ajuda. Antes que eu me antecipe e comece a falar da Lucy aqui, vamos aos personagens.

Personagens

Charlie Brown é o menino mais sensível de todos os tempos. Se eu fosse um babaca e quisesse criar polêmica, diria que ele é o primeiro emo dos quadrinhos. Fadado ao fracasso. Seu “papagaio” inevitavelmente se precipitará entre os ramos de uma árvore. Seu cabeção sempre será motivo de piada. Ele nunca conseguirá falar com a garotinha ruiva. Todas as crianças receberão doces no Halloween e ele receberá “uma pedra”. O trágico é que Minduim não é inferior, apenas anos de pressão o deixaram à beira do colapso. A necessidade da sociedade em transformar todo mundo em um vencedor o destruiu. O olhar de Charlie às vezes parece segurar o grito, como Álvaro de Campos: “Arre, estou farto de semideuses! Onde é que há gente no mundo?”. O estudante amador e quadrinista de cinema Daniel Sakê, apesar de preferir o Linus, se identifica com Charlie Brown e acredita que sua tristeza quase apática é a fonte de seu carisma. Ao ser perguntado sobre sua “garotinha ruiva”, confessou já ter tido várias, sendo que para uma delas até compôs a pungente canção “terceira série do ensino fundamental. Daniel diz que Schulz influencia seu trabalho, como por exemplo o uso de crianças nas histórias, mas ele é adepto de uma temática mais trash.

Do outro lado do ringue, nossa querida Lucy. Como todas as garotas “protagonistas” da série (exclui-se claramente “a garotinha de cabelo ruivo”, mero amor platônico e idealizado de Charlie Brown), auto-suficiente e arrogante. Lucy sempre tem resposta para tudo, mesmo que ela tenha que inventar na hora. Eterna exploradora da boa-vontade alheia, se algum dia Lucy já foi uma boa pessoa, tinha segundas intenções. Talvez aqui as feministas acusariam Schulz de misoginia, mas obviamente o fato de Lucy ser uma menina tão maquiavélica é diretamente ligado à Charlie Brown ser um garoto. O sexo oposto sempre é muito mais assustador, nesses casos. Ainda assim, tem alguma coisa sobre Lucy que faz com que todos nós, exército de charlie browns jogados nesse mundo, continuemos objetos dessas garotas malvadas e cheias de si.

Mas como um dia é da caça, outro do caçador, Lucy também tem seus problemas. Resolveu se apaixonar logo por Schroeder, o único imune aos seus encantos. Schroeder prefere Beethoven. Imune à Lucy e às neuroses cotidianas, sublima tudo no piano. O mundo poderia desabar ao seu redor, que ele continuaria tocando seu piano. Se Schroeder existisse na vida real, seu nome seria Neil Peart. Baterista da banda Rush, é presença constante nas listas de melhores instrumentistas do mundo. Ao perder tragicamente a filha, e logo em seguida a esposa, Peart se dedicou à sua outra paixão: motocicletas, viajou dois anos pelos Estados Unidos e voltou à sua banda, mais focado que nunca. Continua sendo o maior baterista do mundo e se recusa à dar qualquer depoimento à imprensa.

Falando em angústias sem solução, chegamos ao Snoopy. Em sua imaginação, ele é um ás da Segunda Guerra Mundial, escritor famoso, Joe Cool, uma folha de árvore. Tudo menos um cachorro. Snoopy está eternamente preso à realidade de ser um cão. Snoopy é Michael Jackson. O maior astro pop de todos os tempos, eternamente insatisfeito com o fato de ser negro e homem. Hoje em dia é visto completamente deformado e se vestindo de mulher pelas ruas. Graças à doçura de Schulz, felizmente Snoopy nunca chegará a esse ponto. Macunaimicamente vencido pela preguiça, acaba se contentando com seu pote de ração cheio, pelo menos até o próximo devaneio.

E finalmente (claro que existem vários outros personagens, mas por um motivo ou outro não são tão importantes), chegamos ao personagem mais complexo, e talvez a síntese do homem moderno, criado por Schulz: Linus Van Pelt. Ele, sempre com os cabelos desgrenhados, é praticamente um monge zen-budista. Tem respostas filosóficas para todos os problemas da turma, mas mesmo assim não consegue se desgrudar de seu “security blanket”, seu cobertor azul. Linus tem habilidades que fariam corar um herói de filmes de kung-fu, e ao mesmo tempo continua chupando o dedo. Linus parece sempre saber que da alma à lama se desce em um erro de digitação. Esse é o homem que nos tornamos. Chegamos à lua, mas temos problemas para arrumar às gavetas. Falamos com o Japão em cinco segundos, mas não damos oi ao vizinho da frente.

Mas Linus tem uma coisa que nos falta (e falta aos outros personagens): Linus tem fé. Acredita piamente na Grande Abóbora (uma mistura de Papai-Noel com Jack’o Lantern). Esse é o salto de fé. Linus, com toda a sua sabedoria, sabe que acreditar na Grande Abóbora é tão plausível quanto acreditar em Deus, Capitalismo, Socialismo, Buraco na Camada de Ozônio ou qualquer outra coisa do tipo. A existência é absurda e sem-sentido, se você não tiver aonde se segurar.

Tudo isso nos leva à grande questão: já que é assim, o que eu posso aprender de bom com os Peanuts? Bem, eles nos mostram a maravilha e o terror da liberdade. Charlie Brown anualmente dá uma chance à Lucy, ao ser convencido pela milésima vez a chutar a bola de futebol americano, que ela inevitavelmente tirará do lugar na hora e nosso herói acabará com a cara no chão. Se não existe Deus, então não existe destino. Então quem sabe, se um dia Lucy não tirar a bola, Charlie Brown acertar, Linus largar o cobertor, Snoopy aceitar sua condição canina? Essa é a grande lição da vida. Enquanto você está correndo tentando ser o que não é, a vida está acontecendo aqui e agora, e aceitar a nossa condição fragmentária e incompleta é o único caminho para felicidade, expresso no mantra repetido pelos personagens: “Oh, good grief”.

Reportagem pra faculdade, li e não sei o que eu quis dizer, se alguém descobrir me avise.

3 comentários:

Anônimo disse...

vc é meu Linus Van Pelt pra sempre. e ele nunca vai ser tão complexo e escrever tão bem como vc.
amo e me orgulho
=D
beijos lucy
hihi

GustavoBaldez disse...

No fim acho q tudo é uma questão de fé.
De todas as partes.

Anônimo disse...

teu blog está tão ótimo que fico até com vontade de voltar a escrever.

sabes como é aquela nossa condição eterna, né?


beijo, fran.