Em 2011 todos os meus amigos estavam doentes de contentamento. E eu escrevo como se não fosse hoje e agora porque é bem menos dolorido e dá a impressão que vai passar, mas talvez não passe. E eu insatisfeito com tudo. Tudo soa medíocre e eu já nem ligo. Os remédios não me deixam ligar. Sinto lá no fundo algum incômodo, igual quando você esquece a TV ligada e fica aquele ruído estranho, aquele fantasma da eletricidade que a gente só percebe que existe quando volta do mato ou vive uns dias surdos. Medíocre e cansado. Eu quero voltar a escrever como quem faz pintura rupestre. Quem faz pintura rupestre, ao contrário do que a gente acredita, não quer lembrar de nada, não é sobre memória. É sobre o futuro.
Eu quero escrever os meus desejos e que eles aconteçam (mesmo que digam pra eu ser cuidadoso com o que peço, é melhor lidar com small print existencial que com esse tédio todo). Eu tive um gosto disso um dia desses, que entre álcool e discussões sobre god/art/betterment of humanity eu pensei bem forte que seria divertido ter uma femme fatale por ali e funcionou bem funcionado mas isso é outra história que envolve as flores da Georgia O’keeffe e um pedaço de papel que eu passei a guardar como um augúrio na carteira e um lembrete ‘escrever cartas de amor para estranhas’.
Se eu pudesse também ia dizer que sonhei umas três vezes com você e eram uns sonhos meio alegóricos. O primeiro envolvia uma cidade que eu não conheço mas uma igreja que eu conhecia e uma dose saudável de profanação. O segundo eu não sei se ventava ou se era o metrô (subte é bem mais bonito, então tomara que o sonho não tenha sido no Brasil) e seu cabelo era bem maior que eu gosto e os cheiros eram meio amarelos e eu descobria que não lembro da sua voz. Eu chamei seu nome umas três vezes com a certeza que você não ia olhar, mas você olhou e acabou com qualquer possibilidade de graça. Eu queria um motivo pra te odiar mais uns meses e você foi estranhamente doce e tive vontade de te contar dos filmes que você não viu. Foi um sonho triste e eu acordei como se depois de muito tempo eu tivesse voltado pra casa. Pra completar o tríptico de sonhos eu não quero contar o terceiro. Ou eu só inventei que eram três porque gosto da cara do número. De qualquer maneira se você pedir eu invento o sonho.
Eu tenho planos e tenho ideias e tenho um monte de coisas pra te contar mas a realidade anda tão feia quanto aquele foguete Atlas V destruindo um parélio ao atingir a velocidade do som. Sério. É a coisa mais aterradora do Universo, nunca procure o vídeo.
O que fazer, eu gosto de andar sozinho e colocar a cabeça no lugar, ultimamente parece que quando eu estou colocando a última peça eu sempre esbarro com alguém e como vai a família vamos tomar uma cerveja o que você achou do disco novo. Eu preciso andar em ruas que eu sou estrangeiro. Quero não conhecer ninguém. Quero não saber se a próxima esquina é um perigo ou só mais uma banalidade qualquer. Eu nunca soube tão pouco do futuro, mas sei que não gosto muito do presente. Aí fico aqui torcendo por alguma catástrofe, algum acidente feliz que me leve pra bem longe pra ver se eu estou por lá. Que aqui eu não estou faz tempo.
Vai ver é escrever mais. Vai ver é escrever direito. Vai ver é escrever o roteiro que eu me prometi. Mas esse minha paixão pelo space in between, essa vontade de cair na armadilha que a tartaruga fez pra Aquiles, de nunca chegar lá, nunca tocar o céu só achar bacana estar alto pra cacete e o frio na barriga e voltar com as mãos vazias. Eu preciso que as coisas me acertem numa velocidade que não dê pra desviar. Que está tudo ali, sempre ao alcance da mão e essa certeza me faz sorrir e pensar que se está ali mesmo é melhor deixar abertas as possibilidades e ficar contando nos dedos tudo que não é meu mas bem poderia ter sido. Mas as renúncias sempre parecem mais bonitas que as escolhas então eu não quero te condenar a estar do lado das escolhas, quero que você continue potencial e descoberta e curiosidade e não saber bem como funcionam suas engrenagens e quais são seus sinais e quais a gente inventaria no caminho. No fundo eu é que estou bem vazio e não tenho nada pra mostrar além de um sorriso e três ou quatro observações inteligentes que nunca são verdade na manhã seguinte quando o gin e a coragem já foram embora. E quem se importa? Eu volto sozinho pra casa faz tanto tempo que os hábitos solitários já viraram quase uma religião e os travesseiros no formato das minhas costas arqueadas pra ler algum livro ou esticar o pescoço pra olhar pros filmes na TV parecem mais certas e eternas que qualquer rio ou montanha. Talvez eu fique sozinho pra sempre. Essas intermitências entre sozinho e feliz e junto e triste e todas as combinações possíveis dos quatro me cansaram e vão ser o meu fim. Mas eu quero. Quero deixar a anestesia de lado, colocar a dor numa coleira e levar orgulhoso pra passear. Que ela é elegante e é combustível e é justa e acho que só assim a vida vai seguir em frente. Parar de lamber as cicatrizes antigas e procurar umas novas e lembrar que eu sangro e que é melhor isso que a alternativa, que é continuar morto e automático e com um sorriso pesado no rosto pensando em planos novos e em largar tudo pela matemática. Eu estou bem aqui, só preciso parar de ter pena de mim e dos outros e voltar a contar o quanto eu sou terrível o quanto você é terrível e o quanto isso é fantástico e vai fazer o mundo voltar a ser fantástico cruel cheio de energia sabor destruição sorvete ressaca pratos quebrados gritos às três da manhã sussurros às duas da tarde música aleatória fumaça tardes na cama nada pra fazer além de fumar um cigarro rir do jeito que o sol pela persiana vai fazendo linhas cada vez mais fortes nas suas costas e da inutilidade que é dizer qualquer coisa parecida com aquelas palavras idiotas e que dessa vez você nunca vai embora e espero que não volte. Que você sempre vai embora e sempre volta. Parece que estamos bem fodidos com as coincidências. Aí você diz que não existem coincidências só pra discordar. Mas no fundo eu acredito cegamente na simpatia que as coincidências tem por mim enquanto você é pura ciência americana e barômetros e por onde andam meus livros e meu casaco negro e aquele disco que eu nunca vou gravar com nossas morning songs. A bônus track é sempre uma canção de ódio que parece de amor. Mas na superfície eu sou amor e coração aberto e volta logo e bagunça tudo de novo e me dá alguém pra culpar pela insônia bebida insolência tabaco e falta de vontade de correr mais doze quilômetros. Do que adianta tanta saúde se não for pra gastar?